"(...) Às 22h00, como fora anunciado, entram discretamente em palco os oito músicos que dão pelo nome: The Dap-Kings. O mestre-de-cerimónias, Binky Griptite (guitarrista da banda), tem como missão o tradicional warm up, convidando-nos de imediato a abandonar as cadeiras e a dar início, assim, à dance party em que se iria tornar este concerto. (...)
(...) Aos 58 anos, do alto do seu metro e meio e perante uma calorosa receção, a artista entra em palco radiante e glamorosa, luzindo um brilho muito próprio, muito além do seu vestido, que viria a inflamar-se mais e mais, no decorrer do concerto. E que grande é esta voz, que enche a sala assim que começa a cantar “Retreat!” – tema também de abertura do seu último álbum, “Give The People What They Want”. (...)
(...) De pé continuamos a aplaudir incessantemente quem nesta noite chuvosa nos alegrou numa performance irrepreensível. Certamente há muitas formas de celebrar a vida, a música é uma delas."
O que foi feito do soul? Ainda se faz esta música actualmente?
Sendo um estilo associado a outro continente e a
décadas passadas, é normal surgirem estas questões. O soul nasceu nos Estados Unidos, no final dos anos 50, vivendo os seus
tempos áureos nas décadas de 60 e 70, acompanhando gerações, revoluções, evoluções. Contudo, os tempos mudam e a música também. A partir dos anos 80 a mística do soul foi gradualmente desvanecendo-se, perdendo força
para outros estilos emergentes como o pop, o disco e
até mesmo o rock. Grandes editoras como a Motown, que formaram o seu império e vingaram graças a esta música, fecharam; outras, como a Atlantic, adaptaram-se. Os cantores esses, pioneiros, bastiões, grandes representantes do soul, também se deixaram ficar pelo caminho... uns faleceram, outros envelheceram e outros, simplesmente, abrandaram o ritmo.
Nos anos 90, parte do soul manteve-se vivo (e ainda se mantém) nos inúmeros beats e samples utilizados por um outro estilo amigo - o hip hop. Muitas vezes os dois caminham de mãos dadas. No final dessa década surge ainda o neo-soul, mais um rebento desta música, adaptado aos tempos e às sonoridades 'modernas'.
Hoje, passados mais de 50 anos desde o seu nascimento, o soul continua a fazer-se ouvir, não fosse esta uma geração de revivalistas, de amantes do 'vintage' e do 'retro'. Graças a estas tendências nostálgicas, saudosas do passado, em que até a forma de ouvir música é recuperada e o vinil ganha um novo fôlego, existem editoras e artistas que lutam por manter viva e fresca a essência do soul, numa roupagem mais suave e renovada.
Charles Bradley é um bom exemplo do soul que se faz actualmente. Passou uma vida de tormentos, viveu na rua e cantou em bares, mantendo sempre acesa a chama do seu amor pela música, até ser descoberto, num bar, numa dessas noites, pela editora Daptone Records, aos 62 anos. Desde então já gravou 2 discos ("No Time For Dreaming" e "Victim of Love"), inspirou um documentário ("Soul of America") e percorreu o mundo e as suas salas de concertos. A sua voz é densa como a de um verdadeiro cantor de soul; a sua música fala de um país, de dificuldades, de luta, de amor e gratidão.
Outra lutadora e que pertence à mesma editora é Sharon Jones & The Dap-Kings. Há quem diga que é a versão feminina de James Brown. Tal como Bradley, esta cantora também iniciou a sua carreira tarde, na meia idade. Lançou o seu primeiro álbum em 2002 mas apenas se tornou realmente conhecida em 2010 com o disco, "I Learned The Hard Way". Depois disso, passou um período conturbado (enfrentou um cancro), regressando este ano com mais vontade do que nunca e um novo trabalho debaixo do braço - "Give The People What They Want". Dia 23 de Novembro estará na Aula Magna, em Lisboa, para apresentá-lo e eu espero poder estar lá para ver, ouvir e sentir novamente a energia frenética e contagiante desta senhora.
Mudamos de editora e chegamos ao mais veterano deste soul renovado - Lee Fields. Nascido em 1951, viveu no apogeu 'James Brown', valendo-lhe o apelido 'Little JB', graças às semelhanças entre as suas vozes. Uma vida passada na sombra desta celebridade até que a editora Truth & Soul Records o redescobriu, dando-lhe uma banda (The Expressions) e uma personalidade enquanto cantor. Em 2010 grava o seu primeiro álbum nesta nova pele ("My World") e, o mais curioso, é eu perceber (enquanto escrevo este post), que em Junho deste ano ele lançou um novo trabalho intitulado "Emma Jean", que eu desconhecia totalmente. (como tal é possível?!).
Continuamos na Truth & Soul Records e uma das suas mais recentes apostas - Lady.
Terri Walker e Nicole Wray dão voz e alma a este projecto revivalista, que procura a fusão perfeita de vozes que se fazia no soul do passado, em grupos como foram Martha and the Vandellas, The Marvelettes ou as míticas Supremes. Vozes quentes e sincopadamente afinadas, traduzem-se em melodias doces que nos falam de romance, tal como antigamente.
Outra voz revelação do soul foi a do jovem Michael Kiwanuka. A mesma, certamente, não compactua com a sua idade uma vez que, por todos foi favoravelmente conotada como 'uma voz velha'... talvez porque nos lembre com melancolia as vozes de então, de outras eras, dos tempos de Otis Redding e Bill Withers. O seu primeiro e único álbum,"Home Again", foi lançado em 2012 e já merecia um sucessor. Esperemos que não nos faça esperar muito mais.
Quem não conhece o tema "I Need A Dollar"? Foi um êxito de vendas em 2010 que nos deu a conhecer o charmoso Aloe Blacc. De origem panamense, este cantor iniciou-se como rapper no hip hop, até a editora Stones Throw Records o associar à sua verdadeira essência - o soul. Este contrato benéfico para todos, trouxe-nos, literalmente, "Good Things" e com ele uma verdadeira lufada de ar fresco no já apelidado 'retro soul'. Este ano Aloe Blacc mudou de editora (Interscope Records), lançando um novo álbum e, diga-se, a diferença fez-se notar, para meu desagrado.
Mas voltemos à virtuosa Stones Throw e a um dos seus artistas mais adoravelmente excêntrico - Mayer Hawthorne! Este skater/DJ (entre outras virtudes) tem um radiante primeiro álbum, com o soul mais delicioso que se faz hoje em dia - "A Strange Arrangement" (2009). A partir daí, outros dois vieram mas com essências diferentes que, a mim, não me fazem tão feliz como o primeiro. Ainda assim, adoro-o porque é brilhante e espero ansiosamente por tudo o que ele me trouxer a seguir.
Por fim, Cody ChesnuTT - o cantor que me arrebatou em dois concertos no mais curto espaço físico e temporal de sempre! Primeiro em Dezembro (2012), na Estação do Rossio, e três meses e alguns metros depois no Ritz Clube. Numa palavra: impressionante - a sua entrega, a sua devoção e o seu amor pela música.
De referir que, a juntar a Cody e com a excepção das Lady, trago comigo a alegria de já os ter visto actuar a todos, ao vivo, a cores e bom som e de poder comprovar que, efectivamente, é com alma e muito groove que todos representam esta música tão querida e sentida actualmente, no presente.
Termino não sem antes mencionar outros nomes como Myron & E, Vintage Trouble, Nicole Willis and The Soul Investigators, Allen Stone e Liam Bailey, entre muitos outros que - espero - andem por aí a espalhar o soul!
Volta e meia gosto de fazer estas introspecções em relação a
mim, ao Groove e ao que nos tem acontecido ao longo destes dois anos (cumpridos
no final de Julho) e não resisto em partilhar convosco.
Na verdade eu escrevo
muito, sempre escrevi, mas pronto, nem todos os textos se convertem em posts... Este, contudo, achei justo partilhar convosco pois, sejam amigos, leitores,
ouvintes, conhecidos ou desconhecidos, ajudam a manter vivo este projecto que me
é tão querido e especial, dão-me força e alento para continuá-lo, estimulam a
minha criatividade, a minha paixão pela música e contribuem desta forma para a
minha felicidade uma vez que, o Groove faz parte dela. Estou-vos
por isso grata e nada melhor que transmiti-lo por palavras, com música. I wanna thank you for lettin' me be myself...
Tem sido relativamente cíclica a evolução do Groove. Fazendo uma
análise retrospectiva, tudo começou neste blogue - a forma que arranjei de partilhar a minha paixão com o mundo. Alguns meses depois surgiram as críticas a álbuns
e concertos para o Palco Principal, uma escrita não tão pessoal e descontraída,
mas igualmente prazenteira, que me permitiu aprender e evoluir. No
final do primeiro ano, surge então a oportunidade de lançar-me num programa de
rádio. Algo assustador ao início, como todos os desafios que me têm sido propostos
nestes territórios desconhecidos para mim, mas aos quais me atiro de cabeça,
não fosse o sentimento que me move o mais forte de todos eles: o amor que tenho
pela música.
Por ser um desafio novo e que iria exigir mais do meu tempo, este segundo ano foi dedicado mais à
rádio em detrimento da escrita. Tem sido bom, muito bom, explorar esta
vertente que, muito sinceramente, não pensava vir a concretizar e, embora já me
sinta mais ‘confortável’ em frente ao microfone, continua a ser a produção
do programa o que mais me entusiasma fazer - a escolha das músicas, do alinhamento, contar-vos
as suas histórias e dos seus artistas, ideias para programas temáticos, etc. Em 45 edições já tivemos programas dedicados a covers, bandas sonoras,
trios famosos, especiais de Natal e Bobby Womack, o nascimento do Groove
Brasil e uma entrevista ao cantor NBC, o primeiro convidado do programa.
Foi por isso um ano extremamente rico, que só me dá vontade
de mais - mais música, mais criatividade, mais conhecimento, mais experiências
novas.
Ao longo deste percurso, há contudo uma pergunta que muitas
das pessoas novas que se cruzam na minha vida me fazem – como, quando e
porquê esta paixão pelo soul?
Ao contrário de muitos que cresceram ouvindo estas músicas em casa, porque os seus pais assim o faziam, a minha paixão pelo soul revelou-se
tarde, numa idade já adulta, mas penso que no tempo certo. Surgiu na altura em
que aprendi a conhecer-me e, lentamente, fui formando a minha personalidade, na
qual esta música foi-se encarnando como parte dela.
Sempre gostei de música, isso era algo latente e o meu
interesse por ela sempre existiu. Mas foi aos vinte e poucos anos, no processo
normal de crescimento, em que se conhece pessoas novas que nos fazem aprender e
nos ajudam a abrir a cabeça para o mundo, que as primeiras vozes quentes do soul me foram apresentadas, despertando-me o interesse. Lembro-me da primeira
vez que ouvi Otis Redding, o encantada que aquela voz grave e rouca me deixou; e Nina Simone, que jurava ser um homem a cantar! (lol) Depois vieram outros e com
eles o Marvin, que me arrebatou por completo, deixando-me irremediavelmente apaixonada pela sua música e 'alma'.
Foi uma descoberta lenta, natural e continua. Fui-me
apaixonando aos poucos e à medida que o tempo passava. Quanto mais ouvia,
quanto mais pesquisava e mais descobria sobre a história desta música, mais me
fascinava. E com o soul, todos os estilos à sua volta foram ganhando mais
força, como o R&B, o hip hop, o neo-soul e até mesmo o blues e o jazz.
São deveras muitos os atributos que adoro no soul… as suas
vozes maravilhosas e únicas, os seus ritmos envolventes, as mensagens das suas
letras… é verdadeiramente um estilo muito quente e apaixonado, puro em emoções,
que apela ao coração e aos sentidos… o groove, um simples estalar de dedos…
aquilo que nem todos possuem, que não se explica, sente-se.
Mas o que muitos não sabem sobre o soul e constitui também um motivo bem forte da minha adoração é a sua história.
Há precisamente um ano, estava eu igualmente hibernada
no meu calmo e aprazível Algarve mas, ao contrário das ‘férias lazy’ que
habitualmente costumo ter, passei essas duas semanas numa missão que, incrivelmente,
me fez passar mais tempo em frente ao computador do que na praia (por livre vontade)!
Passei parte dos meus dias preparando a apresentação que viria a realizar no estúdio Teambox (LxFactory), numa noite dedicada ao Groove your Soul, no início de Setembro. Além da oportunidade de poder
partilhar o meu projecto, esta apresentação possibilitou-me também aprender e
conhecer ainda mais acerca da história e do passado fascinante desta música.
Muito resumidamente, com raízes no gospel e nas ‘work songs’ (canto dos escravos
e mais tarde dos operários), o soul nasceu no final dos anos 50 e teve a sua
força nas décadas de 60 e 70. Mais do que um estilo de música muitas vezes
conotado como ‘música de negros’, a sua origem e o seu papel foi fundamental na
história de muitas sociedades afro-americanas nos EUA, na luta contra o racismo
e pela igualdades de direitos.
A música soul serviu como uma forma de liberdade de
expressão, de protesto numa revolução não violenta. Marchas, discursos e manifestações
fizeram-se ouvir ao som de músicas que se tornaram hinos como ‘A Change Is
Gonna Come’ (Sam Cooke), “Keep On Pushing” (Curtis Mayfield & The
Impressions) ou ‘What’s Going On’ (Marvin Gaye).
Cantores como Curtis Mayfield ou Nina Simone foram figuras
inspiradoras e exemplos de força, orgulho e determinação para muitas gerações
de jovens que não acreditavam ou temiam pelo seu futuro.
Não foi uma época fácil e, talvez por isso, as suas letras e as suas vozes eram tão sentidas, tão sinceras e tão apaixonadas. O seu papel 'revolucionário' só faz com que a minha admiração cresça ainda mais.
Podia passar horas, a noite inteira, escrevendo-vos sobre este sentimento/tema… mas o post já vai longo e penso que já deu para responder à pergunta... :)