José James é como o vinho do Porto, com o passar do tempo
está cada vez melhor. Talvez seja um bocado clichê começar desta forma o texto que descreve a passagem do cantor pela cidade invicta, no passado sábado. Mas na
verdade, de clichê este senhor não tem nada, senão a sua antítese.
Brindou-nos sim, com um concerto envolvente, sedutor, guloso e maduro, tal como se quer um vinho do Porto, e que eu sorvi até à última gota.
James pisa o palco da Casa da Música, no Porto, não de smoking como era esperado, mas de casaco de cabedal e
óculos escuros. Enganam-se aqueles que, tal como eu, pensaram que vinham para um
concerto sóbrio de jazz em homenagem à diva Billie Holiday. Não, não. Foi sim um concerto do inigualável José James, num tributo muito próprio, muito seu,
à sua querida mãe musical – Billie Holiday.
Antes de mais, apenas fazer uma ressalva ao maravilhoso auditório da Casa da Música, que eu ainda não
tinha tido o prazer de conhecer, e cuja acústica é tão nítida e limpa que até
irrita! Poderia ouvir-se um alfinete cair, tal como se ouvia perfeitamente a tensão das cordas do contrabaixo de Solomon Dorsey. Um extra, que só torna este
vinho ainda mais saboroso.
Mas prossigamos. José James entrou descontraído, e com todo o
seu swag dá inicio à sua ode a Billie Holiday. “Good Morning Heartache” foi o primeiro
tema da noite, o qual também abre o seu último álbum dedicado ao centenário da
cantora – “Yesterday I Had The Blues:The Music of Billie Holiday”. Cedo nos apresenta também a sua
banda, composta pelos seus novos músicos Takeshi Ohbayashi no piano/teclas e Ryan
Lee na bateria e o seu companheiro de longa data, reverendo Solomon
Dorsey no contrabaixo/baixo.
Como gosta José James de realçar e enaltecer a sua banda e
como eu adoro que ele o faça! Ao longo dos 4 concertos que já presenciei do cantor, é incansável e louvável o seu esforço em fazer notar a sua banda ao
invés de se fazer notar apenas a si. Esse é mais um dos segredos do seu
sucesso - a humildade e cumplicidade que mantém em palco com os seus músicos, e que se traduz na qualidade do seu trabalho.
“Body and Soul” é a canção que se segue. Ainda só estamos no
segundo tema mas é mais do que suficiente para perceber o brilhantismo e a mestria com que José James pega carinhosa e educadamente nas músicas de Billie
Holiday e as converte em suas. É impressionante como a sua música já tem uma
marca, um cunho tão pessoal, que ao ouvirmos aquela interpretação poderíamos dizer:
“Isto é Bilie Holiday!" ou "Não, não, isto é José James!”.
Pois é… é talento,
respeito, trabalho e também amor, o que o cantor deposita em cada um destes
temas, como forma de agradecimento a uma figura que, como o mesmo diz, o
inspirou, ensinou e tanto lhe deu ao longo da sua jornada musical.
Sempre a interagir com o público, James estava calmo e sereno,
descontraído como se estivesse em casa e não na Casa da Música. Foi esse o
sentimento que nos quis transmitir, bem como o de felicidade e gratidão
por poder regressar passados 8 anos de pisar pela primeira vez aquele palco, desta vez a solo, com a sua banda.
Com “Fine and Mellow” e “Tenderly”, José James prossegue com
a sua banda ao ritmo do jazz mas com um groove único que faz o seu corpo
balançar e as suas mãos deambular, como se de outros beats se tratassem. Quem visse e não ouvisse, diria que era hip hop e não jazz o que se tocava hoje ali.
Continuamos e chegamos ao momento em que as minhas suspeitas se confirmam! A viola e o baixo que discretamente aguardavam pela sua vez no palco, entraram
em cena! James percorre alguns dos temas dos seus anteriores trabalhos, para
grande alegria dos inúmeros fãs que lá se encontravam. “Come To My Door”, “Simply
Beautiful”, “Trouble” e “Park Bench People” foram interpretados por José James, numa versão de José James. E sabem porque digo isto? Porque é assim que os
grandes artistas interpretam os seus temas nos seus concertos: de forma diferente
àquela que nos habituaram quando os gravaram em estúdio, com toda uma variedade de arranjos, particularidades
e combinações apenas possíveis quando tocados e sentidos ao vivo. É essa a ‘blackmagic’
que José James faz nos seus concertos.
Aproximamo-nos do final mas ainda há tempo para homenagear também a costela soul do
cantor – o espírito de Bill Withers é invocado num pequeno medley ao som de “Who
Is He (and What Is He To You)”, ”Ain’t No Sunshine” e ”Grandma’s Hands”.
Satisfeitos, com “God Bless The Child” regressamos a Billie
Holiday, figura central desta noite a quem o cantor não se cansa de enaltecer,
realçando o contributo pioneiro e imprescindível da cantora no mundo da música,
em detrimento do lado dramático da sua vida que uma sociedade sexista prefere destacar.
A quem também não são poupados elogios é à sua banda, cujo
esforço para o acompanhar nesta digressão é de valor, na qual praticamente,
diariamente, se encontram em viagem. Eu bem os acompanho também nas redes
sociais e, efectivamente, é de louvar as horas de sono perdidas, o cansaço e os quilómetros
palmilhados e, ainda assim, nos presentearem com uma performance daquelas. Palmas,
muitas palmas e uma Casa da Música inteira de pé para agradecer o maravilhoso espectáculo proporcionado naquela noite.
José James regressa sozinho para o desejado encore, deixando-se acompanhar
apenas pela sua viola. Fazendo jus à coincidência do dia (4 de Julho, dia da independência nos Estados Unidos, um dos feriados mais importantes e emblemáticos do seu país),
é com tristeza e sem patriotismo que o cantor partilha connosco a desolação de
não se identificar com o país que o viu nascer, face aos últimos acontecimentos
de violência e racismo que o têm assolado.
Como há 50 anos, a música
continua a ser uma forma de expressão livre e as vozes que se fazem ouvir a arma com que lutar. Assim,
tal como em 1964 a esperança por um mundo melhor foi entoada por Sam Cooke,
pai da música soul, em “A Change Is Gonna Come”, também no passado sábado José James o fez, numa bonita e sentida interpretação, evidenciando (não pelos
melhores motivos) a intemporalidade desta canção.
Por fim, se ainda não falei da técnica neste concerto é
porque dou por certo que já perceberam que a mesma foi irrepreensível. Seja a
solo, seja em grupo, todos e cada um dos instrumentos não desafinaram uma nota,
numa coordenação milimétrica. O instrumento, contudo, destacado para o derradeiro final
foi a incrível e elástica voz de José James. Camadas e camadas da sua própria
voz foram o suficiente para, sozinho, construir com subtileza a música com mais
carga emotiva de toda a noite – “Strange Fruit”. O respeito e admiração
fizeram-se sentir pelo silêncio rigoroso dos que, fascinados, admiravam a sua
arte, apenas quebrado pela ovação de palmas que viria a seguir, em agradecimento ao bonito e caloroso concerto que durante pouco mais de duas
horas nos fez sorrir.
Sim, José James é como o vinho do Porto, está cada vez melhor,
mais maduro e seguro de si e quem prova só pensa numa coisa: repetir.
Alinhamento:
01. Good Morning Heartache 02. Body and Soul 03. Fine and Mellow 04. Tenderly 05. Come To My Door 06. Simply Beautiful 07. Trouble 08. Bill Withers medley 09. Park Bench People 10. God Bless The Child 11. A Change Is Gonna Come 12. Strange Fruit