É engraçada a forma como certas pessoas surgem na nossa vida.
Com o tempo apercebemo-nos daquelas que ficam, que fazem
questão de nos acompanhar, e daquelas que partem, que já cumpriram o seu papel.
Acredito seriamente que estamos todos ligados e que não
surgimos na vida uns dos outros por acaso. Por vezes é circunstancial, crucial até,
consoante os momentos e as fases da vida que estamos a atravessar. Enfim, pode
parecer um pouco transcendente, mas penso que determinadas pessoas permanecem
na nossa vida o tempo que tiver que ser, nem mais nem menos. O tempo que tivermos a aprender com elas e elas connosco. Funciona como uma troca, na qual damos e recebemos. Uma
troca que faz-nos crescer, evoluir, amadurecer.
Seja qual for a razão, acredito que todas e cada uma
das pessoas com as quais nos cruzamos ao longo do nosso caminho têm um papel,
um sentido, um significado.
Este ano surgiu uma pessoa na minha vida graças à música - um amor em comum.
E neste Natal essa pessoa reacendeu o espírito natalício
que estava apagado em mim, com um gesto simples de generosidade e amizade.
A forma que eu tenho de lhe agradecer e retribuir, é
esta.
Vês, eu bem te disse que cada post tinha a sua hora de ser e acontecer… ;)
Nome incontornável da música soul, hoje trago-vos um cantor,
um músico e um poeta – Gil Scott-Heron.
Já conheci a música de Gil Scott-Heron tarde.
Sabia da sua existência,
de ser conhecido por ser o grande poeta negro da música Americana, do seu
mítico poema "The Revolution Will
Not Be Televised", mas nunca tinha dedicado muito tempo a conhecer a sua
música e a perceber a versatilidade que alcança este cantor, bem como o sentimento, a
garra e a revolta que põe nas suas canções.
Quando Gil Scott-Heron actuou pela primeira e única vez em
Portugal, em Maio de 2010, eu ainda não tinha consciência disso. Um ano após
esse concerto, Heron viria a falecer aos seus 62 anos. Só então, como infelizmente muitas vezes acontece sempre que morre um artista, viria a conhecer verdadeiramente a sua obra.
Heron é um poeta do povo, um activista.
Como compositor e
cantor não tem medo de falar abertamente sobre aquilo que lhe aflige, que
aflige o seu país. Heron expõe, critica, questiona.
Como músico, tanto podemos ouvi-lo a cantar os seus versos
sob forma do rap (diz-se inclusive que Heron foi um dos progenitores do hip hop),
bem como embalar-nos ao som do jazz ou deixar-nos melancólicos ouvindo o seu blues…
Este poeta nasceu em Chicago (EUA), mas cedo mudou-se para o
bairro de Bronx (Nova York), onde iniciou os seus estudos. Desde a adolescência
que Heron escrevia poesia. mas foi durante os anos de faculdade que o mesmo
dedicou-se a escrever a sua primeira novela – “The Vulture”, publicada em 1970.
Nesse mesmo ano, Heron conhece o lendário produtor de jazz,
Bob Thiele, e, encorajado pelo mesmo, lança o seu primeiro álbum – “Small Talk
at 125th and Lenox”, inspirado no seu volume de poemas com o mesmo nome.
Este disco tem como tema principal a dura crítica à superficialidade
dos meios de comunicação (em especial a televisão), ao consumismo em massa e à consequente
ignorância dos cidadãos brancos Americanos.
Além da conhecida “The Revolution Will Not Be Televised”, o álbum
conta com outro poema controverso como é este “Whitey on the Moon”.
A rat done bit my sister Nell.
(with Whitey on the moon)
Her face and arms began to swell.
(and Whitey's on the moon)
I can't pay no doctor bill.
(but Whitey's on the moon)
Ten years from now I'll be payin' still.
(while Whitey's on the moon)
(with Whitey on the moon)
Her face and arms began to swell.
(and Whitey's on the moon)
I can't pay no doctor bill.
(but Whitey's on the moon)
Ten years from now I'll be payin' still.
(while Whitey's on the moon)
…
Em 1971 é lançado “Pieces of a Man”, o seu segundo trabalho
e, para mim, o seu melhor álbum. O mesmo conta com uma estrutura de canções mais
convencional, com uma menor predominância da palavra-falada, bastante influente no seu anterior trabalho.
O tema-título do disco é, simplesmente, sensacional…
De uma
sensibilidade tremenda, nesta canção um menino descreve-nos a forma em como assiste
à tristeza e desolação que caiu sobre o seu pai, após perder o emprego. Uma
música que retrata as dificuldades que se faziam sentir naquela época. Um música que
eu adoro pela capacidade que tem de ser tão dura e tão doce ao mesmo tempo.
I saw my daddy greet the mailman
And I heard the mailman say
"Now don't you take this letter to heart now Jimmy
Cause they've laid off nine others today"
He didn't know what he was saying
He could hardly understand
That he was only talking to
Pieces of a man
I saw the thunder and heard the lightning
And felt the burden of his shame
And for some unknown reason
He never turned my way
And I heard the mailman say
"Now don't you take this letter to heart now Jimmy
Cause they've laid off nine others today"
He didn't know what he was saying
He could hardly understand
That he was only talking to
Pieces of a man
I saw the thunder and heard the lightning
And felt the burden of his shame
And for some unknown reason
He never turned my way
…
Com
melodias igualmente calmas e incitando valores como a paz, a liberdade e o amor,
encontramos os temas “Save the Children” e "I Think I'll Call It Morning".
A destacar
também deste álbum os temas: "Lady Day and John Coltrane" – uma
dedicatória aos músicos de jazz que mais o influenciaram (John Coltrane
e Billie Holiday), e "Home Is Where the Hatred Is" - outro tema difícil, em que o narrador vive num ghetto no
qual a alegria e a esperança não têm lugar.
Em 1974
Heron lança outro álbum extremamente aclamado pela crítica – “Winter in America”.
Tal como em “Pieces of a Man”, conta com a colaboração do seu amigo músico, compositor
e produtor, Brian Jackson.
Neste trabalho
Heron recorre às raízes da cultura Afro-Americana, dando-lhe uma sonoridade mais Afro e R&B, evidenciando, contudo, um toque de jazz e blues conferidos por Brian através dos seus apontamentos de piano e flauta nas suas músicas. Tal
é visível no seu, talvez, maior êxito de sempre – “The Bottle”.
O nome do
álbum é representativo do que Heron quer transmitir – um inverno frio e
cinzento que se abateu sobre o país Americano. É referida novamente a desilusão social
e a decadência das condições humanas, particularmente em ambientes urbanos
como os ghettos. Temas como pobreza, alcoolismo ou escândalos políticos são também abordados.
Além deste jazzy "Peace Go with You, Brother", também encontramos no
álbum outro tema com um swing maravilhoso
- “Rivers of My Fathers” – uma viagem às raízes, no qual o narrador pede ao “rio”
que lhe leve para casa. Casa esta, entenda-se por África - Looking
for a way out of this confusion/I'm looking for a sign, carry me home/Let me
lay down by a stream and let me be miles from everything/Rivers of my fathers,
could you carry me home…
E, sem o rio
mas com groove, chegamos a “Back
Home” - uma música mais positiva, onde valores como a família e o amor são
enfatizados. Destaco também as baladas "Song for Bobby Smith" e "Your
Daddy Loves You”, esta última dedicada à sua filha. A flauta de Brian Jackson
enfeita igualmente estas músicas.
Gil
Scott-Heron lançou mais álbuns ao longo dos anos 70, quatro na década de 80 e
um na década de 90 (em 1994). Por fim, regressa passados dezasseis anos,
lançando em 2010 o seu último álbum “I'm
New Here”. Um álbum bem recebido pela
crítica e uma felicidade para muitos pelo seu regresso para, ironicamente, um ano
depois nos deixar. Fica o single retirado com o mesmo nome.
Gosto destes
dois lados de Gil Scott-Heron… o lado negro, sombrio, onde há revolta, indignação,
onde são cantados os problemas sob forma de alerta, de mensagem. E depois, o
lado doce, pacífico, calmo, livre… onde reside a esperança por um amanhã
melhor, onde reside o amor pela vida, pelas pessoas. Esse amor precisamente pelo
qual vale a pena lutar.
Gosto ainda
mais quando estes dois lados se tocam, e quando ouvimos poemas através de melodias bonitas.
Tenho pena
de não o ter conhecido mais cedo, de não ter ido ao seu concerto. Acho que
teria adorado sentir as suas palavras, ouvir a voz que clamou tanto por um povo… Teria adorado, igualmente, deliciar-me com o som característico do seu piano e da
flauta nas suas músicas… Enfim, fica o consolo de saber que a sua música é
imortal e poderei recorrer a ela e a ele, sempre que quiser.
Bem, e visto que este será o último post do ano, parece-me que deveria dizer qualquer coisa acerca do
assunto… A verdade é que nunca liguei muito a celebrações de fim de ano.
Basicamente considero um dia como outro qualquer. No entanto, não deixa de
representar o fechar do mais um ciclo e o começo de outro. E no final de cada
ciclo é inevitável não fazermos um balanço, uma reflexão do que passou, das
nossas acções, do que vivemos, do que conquistámos, do que perdemos. Da mesma forma, torna-se
também inevitável não pensarmos no futuro, fazermos planos para o novo ano,
objectivos que queremos ver realizados.
Cada ano traz-nos coisas boas e outras menos boas. Há anos
que nos marcam, anos de mudança, outros passam despercebidos, serenos, sem
grandes oscilações. Seja qual for o tipo de ano, gosto de olhar para trás e recordar
os bons momentos que vivi, interiorizar as lições que aprendi. Gosto mais ainda
de olhar em frente, ver o caminho que ainda tenho por percorrer e a bagagem que
levo comigo para fazê-lo. Uma bagagem um bocadinho mais cheia a cada ano que passa.
Este ano foi um ano de algumas mudanças para mim. Mudanças
boas, que me fizeram avançar, evoluir. Mas já que começámos por falar de
relações humanas, fico feliz por saber que, além dessas mudanças, também trago na minha bagagem mais pessoas que passaram a fazer parte da minha vida. Novas amizades
que me fazem sentir bem. Isso sim, mais do que tudo, deixa-me feliz. Isso sim
quero levar em abundância na minha bagagem quando um dia me for. Até lá, que
venham muitos e bons anos pela frente!
Bom 2013 para todos.
Sejam felizes!